terça-feira, 27 de março de 2012

Destruição e Reconstrução


Não que a ave grega não tenha seu valor pela imperiosa força de renascimento. A questão focal não é esta. Obviamente que a oportunidade de recomeçar é sempre bem-vinda e reflete uma espécie de concessão supra-real (divina, se quiserem assim chamar) para todo ser vivo.

Entretanto (o que seria do mundo se não houvesse o “entretanto”?), a faculdade de renascer não é espontânea. Advém de uma “ignição” muitas vezes desprezadas por parte dos que olham somente o resultado e se esquecem do processo. Em outras palavras – para não nos acusarem de herméticos –, nenhuma fênix assim seria chamada se não houvesse o fogo que a consumisse antes. Nossa ótica, quanta vez capenga, não consegue perceber que aquilo que “destrói” tem função restauradora e oportuniza o crescimento. Só há espaço para outras chances quando há uma varredura (otimização, se assim preferirem) do antigo. Caso contrário, corre-se o risco de virar amontoado a mesclar velhos, desnecessários, desgastados, finalizados com os novos, inéditos, refeitos e restaurados. Isto embaça a vista e colabora para que na confusão não distingamos (e tampouco escolhamos) entre o servível e o desprezível.

Eis então a função gratificante e importantíssima do fogo que consome e abre claros que garantem a existência da fênix como tal.

terça-feira, 20 de março de 2012

Transformação


Havia sorvido toda a água do mar com canudinho, deixando a flora e a fauna marinha na aridez das areias depositadas no que um dia teria sido as profundezas dos oceanos. Colaborou na tintura do cinza-chumbo do horizonte e de todo a abóboda celeste. Ceifou com maquinário afiadíssimo os verdejantes prados cultivados pelo tempo. Fez escorrer as lamas dos altos degelos de montanhas himalaicas. Fez abismos ao gerar sumidouros rasgando o solo sedimentado. Contaminou a perfeita combinação dos elementos químicos que, diziam, era chamado de ar puro. Distraiu a atenção que aproximava o ideal do real. Afastou o que foi possível e afastou-se. Enfim, tornou-se uma espécie específica da raça humana.

terça-feira, 13 de março de 2012

Subway

Lá ia eu, no dia de ontem, de metrô para o trabalho. Era cedo, apinhados de gente iam os vagões! Mesmo sonolento, peguei-me surpreso com a cena. Em um mundo globalizado, onde a necessidade de se falar a mesma língua (ou seriam linguagens?) parece ser o mote das questões, deparei-me com uns 50 % dos passageiros com seus fios brancos (ou pretos) que desciam de seus ouvidos. Simplificando: muita gente estava ensimesmada escutando alguma coisa nos seus fones. Curioso e patético, ao mesmo tempo, era ver como ninguém se olhava, nem mesmo percebia a presença do outro. Comecei a brincar de ver. Um estudante (deveria ser) com sua bolsa surrada, com a alça que cruzava o peito, batia na perna como se guitarra tocasse. O jovem new-office-boy (pela camisa de listras de mangas dobradas) balançava a cabeça no que o ritmo lhe ditavam diretamente no cérebro. A garota do top amarelo, preocupada em consertar a postura para não mostrar mais do que já se estava vendo, tinha os tampões nas orelhas, mas era como se nada a obstruísse. E assim, uma sucessão de caras e bocas, todas com a possibilidade de nada interagirem devido à desculpa dos auriculares.
O silêncio, vez por outra, era interrompido pela “próxima estação” (next stop) ou pelo celular insistente de uma senhorinha que, meio surda, gritava para quem estava do outro lado do aparelho (e para nós também) que iria chegar para o almoço!
Que mundo é este onde a façanha tecnológica afasta os homens? Não haviam criado desde as revoluções industriais, cibernéticas e tantas outras um modo de aproximação?!
Será então – pensava eu – que no tempo das liteiras, da mesma maneira, não se comunicavam os que eram carregados para lá e para cá?
Ó São Tablet dos Modernosos, Santa Ipad dos Apressados, Nossa Senhora do MP3, 4, 5, 6, 7 e quantos mais, sei lá! Valei-nos! Desci na estação e, provavelmente, nem me viram!

terça-feira, 6 de março de 2012

É noite lá fora (II)


É noite lá fora... é noite lá fora....
Mas aqui dentro, na claridade do meu dia,
Eu vejo homens de areia fraca
Que escorrem inexoravelmente
Pelas ampulhetas do tempo.
Desfeitas... Descompostas...

É noite lá fora.
Retoma-se o fluxo,
Redobra-se o esforço.
Atento a planos seguros,
Seguimos na atitude
das mãos estendidas.

É noite lá fora

E no arroubo do momento,
Faz-se a compreensão exata da forma
Onde as labaredas da razão
Não arrefecem o incêndio
Da claridade do meu dia.