terça-feira, 26 de abril de 2011

O colecionador de cristais

Colecionava cristais, cuidadosamente guardados em caixa de prata. Com esmero e certeza do que possuía, sabia exatamente quantos tinha e de quando eram. Impressionante a forma como dispunha cada pedra daquela que reluzia ao ser limpa e expostas à luz.
As histórias de cada cristal não se confundiam jamais. Até porque, elas eram o resultado das lágrimas que produzia quando uma dor ou sofrimento se lhe tomava de assalto na vida! Inesquecíveis e guardadas, ali estavam sempre.
Não acreditando em bem que sempre dure – entendendo como bem aquilo que se possui e encarando os cristais como seus mais preciosos bens –, a sorte não lhe soprou a favor naquele dia.
Surpreendido pela cena de uma folha que havia despencado de uma alta árvore e que, soprando leve, uma brisa não permitia que ela caísse logo, um sorriso se esboçou no rosto marcado pelas rugas de tensão sempre alertas! Naquele momento, por distração, deixou que a mente vagasse no mesmo ritmo da folha. Dançando ao sabor do vento, os pensamentos largavam-se todos no entusiasmo provocado pela bailarina amarelecida do anúncio de chegada do outono. Chegava a rir... isto mesmo.. rir do que estava vendo.
Foi o suficiente para sentir que o seu colo começava a ficar molhado. Instintivamente abriu a caixa e, uma a uma, viu cada pedra de cristal desfazendo-se em liquido, voltando a ser lágrima. Perdeu-as todas e culpando-se por haver dado chance a sentir alegria, esquece o lapso do encantamento, torna a fechar a caixa e chora...
Recomeça a coleção de cristais!

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Tabuleiro

O desavisado ou, pelo menos, aquele que se furta a aventura de viver seria capaz de achar estranha a cena. Caso a estranheza ultrapasse às raias da razão, diria ser loucura e desconexão. Mas, a bem da verdade, só quem nunca se arriscou chegaria a tal conclusão.
A mesa, muito bem posta, coloca em régua milimétrica os objetos em imagem refletida. De cada lado, as cadeiras recebem os jogadores que contendo a tensão necessária e capaz, fazem os movimentos segundo o que as suas condições lhes permitem para que não demonstrem vacilações ou improdutividade.
O tabuleiro, alternadamente branco e preto, estimula os apressados a emitirem suas opiniões sobre divertimento. Porém, cabe-me o tino de descrever, nos pormenores, tudo que envolve a questão.
As peças que povoam o lado direito são redondas e achatadas, cabendo por completo em cada “casícula” alva e negra – eis o jogo de damas.
Na outra extremidade, surgem os elevados elementos (torres, cavalos, rei, rainha, bispos e peões) que movidos no limite dos deslocamentos encontram barreiras espaciais – e não especiais – para seguirem em frente! Ali está o xadrez!
Tomando assim de susto, havemos de concordar que não há como aceitar o prosseguimento do embate, pois jogos diferentes, regras outras!
Equívoco pontual de quem desconhece os motivos. Ou seja, a dois, por mais que possa parecer a terceiros algo impossível e estranho, sempre existirão acordos específicos de convivência e por mais disparatada que se mostre a situação, somente os envolvidos asseguram a manutenção do que se propuseram jogar. É estabelecer, num âmbito privado, os sinais de construção do que estabeleceram como meta. Em suma, chamam a isto de casamento.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Compositor

Entre um devaneio e outro, a pausa de meus sentidos apressados fez-me perceber ao longe uma melodia. Confesso que, cansado de engendrar tantos pensamentos, não fui capaz de reconhecer se era uma música produzida por instrumentos do mundo real ou se fazia parte do preenchimento do vazio da mente. A única coisa que posso afirmar é que me deparei com mais uma das verdades (ainda que as verdades sejam sempre parciais) que vou carreando ao longo da minha jornada: a genialidade não carece de tantos elementos para ser considerada descoberta. Pode deixar que tentarei elucidar a questão!
Uma sinfonia, numa análise determinada, é composta da magistral combinação de sons. Entretanto cabe dizer que são somente sete as notas musicais, em escalas diversas, mas restrita e exclusivamente sete. O trabalho – a árdua tarefa da sensibilidade, da emoção, da sorte e do suor – consiste em dar vasão às múltiplas possibilidades e, arrisco-me a dizer, repetitividades dos acordes. E quem pensa que sobre tudo já se criou, pode ser surpreendido com uma nova métrica, uma inédita ária.
Assim também o é na análoga vida. Somos uma apanhado de alguns procedimentos e, magicamente, deparamo-nos com a necessidade de revitalizar o que somos – a bagagem que trazemos – objetivando dar sentido à existência. Mesclamos, selecionamos e até reinventamos (dentro dos limites do que temos nas mãos) a orquestração de nossos dias. Não devemos, logo pois, contar com os fatores estranhos as nossas matérias. Obriguemo-nos sim ao exercício da arte combinatória e, certamente, o resultado trará a harmonia da audição de quem se lança na tarefa de se auscultar.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Tento

Ilumina-me o vento
com as perguntas que invento
desde os meus aposentos.
Sou este relento
de onde o trabalho turbulento
que eu mesmo acrescento
dá luz ao meu sustento.