terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A Dama de Copas


Um tanto quanto afoita e gananciosa, achando que o empenho das ações a faria mais poderosa e assistida, certa feita, a Dama de Copas resolveu garantir a plenitude de sua estabilidade e segurança afetivas. Com o ardil da rapidez, recolheu os ícones dos quatro naipes existentes e providenciou um afiado estilete que, com precisão cirúrgica, abriu em cruz os desenhos de Paus, Ouro, Espadas e Copas. O resultado era previsível: cada forma estava agora composta por quatro pedaços. Tomou para si um quadrante de cada naipe e, juntando-os, “inventou” um novo símbolo. Estava criado um novo naipe seu. Só seu!
Era hora de aproveitar a genial ideia. Entretanto, como o nascimento era fruto de um esquartejamento (ainda que havendo aproveitado o que cada um tinha de mais harmônico), não encontrou a pobre senhora eco entre os demais integrantes do baralho. Não havia nas redondezas nenhum outro modelo que pudesse se aproximar daqueles contornos. Nem mesmo ela estampava a inédita heráldica em sua bandeira!
Se anteriormente afastara-se dos seus e desdenhara o restante, tudo em prol de uma necessidade que não mediu as consequências, agora jazia solitária. O desfecho não foi outro a não ser entristecer-se em seu isolamento da tentativa de um ineditismo que não encontrou parâmetros. Entendeu, na dor da própria carne, que a felicidade não é necessariamente a exclusividade ou a novidade, mas sim, a forma como se reinventam as possibilidades do que se tem na vida!

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A cartomante

Um amigo me contou uma história que vale a pena repassar.
Chegou o dia marcado em que a cartomante não mais pertenceria ao mundo dos vivos. Passados os primeiros momentos da tonteira inerente a quem atravessa a fronteira das vidas, recuperado o fôlego e o equilíbrio da visão mental, eis que ela se deparou com a cena funesta e escura do entorno. Achando que ainda não estava totalmente aprumada, pensou consigo: “Tenho que esperar um pouquinho mais até que eu possa vislumbrar minha nova morada.”
Grão a grão, escorreram as areias do tempo até que ela se deu conta de que não havia mais o que esperar. Era aquela mesma a imagem, era aquele mesmo o local.
Estarrecida (para não dizer assustada) foi em busca de alguém que pudesse lhe explicar o que estava acontecendo. Encontrou-se com uma figura esguia, vestes acinzentadas e pés descalços.
“O senhor poderia me dizer onde estou?”
“Ora, ora... No limbo!”
“Como assim? Impossível! Antes de iniciar esta viagem eu consultei para mim mesma as cartas e, segundo o jogo, vi asas na minha vida. O senhor tem certeza de que estou no lugar certo?”
“Minha filha, para se viver de interpretação, além da experiência que os anos trazem, não basta a intuição, há que se ter isenção. Você viu asas e achou que isto significava céu?”
“O que mais podem representar asas a não ser anjo?” Falava indignada a cartomante.
“Por acaso você via anjos?”
Ela balançava negativamente a cabeça.
“Asas soltas, no seu caso, são as que caíram. Assim como alguns seres celestiais que perderam as suas e tiveram que passar por aqui, devido à descrença ou mau uso de seus dons, alguns seres humanos também perdem suas chances de crescimento e precisam de mais um tempo de aprendizado.”
Cabisbaixa, deu as costas para o porteiro e desanimada caminhou em direção à nova oportunidade de crescer.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Estátuas na areia


Em meio à paisagem um tanto quanto árida, destacavam-se duas belas estátuas do mais raro mármore. O esmero das formas mostrava os detalhes dos contornos e era possível crer na realidade da representação. Estavam uma defronte a outra a se olharem.
Os que por elas passavam admiravam o trabalho do escultor, bem como prestavam atenção nos motivos que as colocaram ali.
Na rapidez das mudanças inesperadas, sobe o pó das areias nas asas da ventania que transforma a paisagem em um único tom bege sem nenhuma outra forma ou cor. Ninguém consegue ver nada mais!
Cada uma das minúsculas pedras acabou tornando-se cruel esmeril a bater fortemente em ambas as estátuas. Uma permaneceu, em grande parte, em sua forma original, somente cravejada dos pequenos estilhaços, mas era possível reconhecê-la como antes. A outra, à medida em que era atingida, soltava fragmentos de sua película mais superficial e revelava, aos poucos, outra base interior. No final, descascada, era completamente outra imagem.
Baixada a agitação da poeira, a cena ressurgia. De um lado, a primeira escultura que, apesar de um tanto quanto mais porosa (devido ao polimento forçado), mantivera os mesmos contornos e feições. A segunda, já não mais na posição que fora colocada inicialmente, encontrava-se de costas a observar uma outra imagem em pedra que surgira após haver cessado o caos.
Entretanto, eis que surge, voraz e inclemente, no horizonte, outra névoa sólida que, na esteira do ar, torna a cobrir todo o cenário! Restava às estátuas esperar passar o torvelinho.
Arrefecidos os ânimos dos Senhores do Tempo, descortinava-se diferente palco. Aquela imagem que fora descascada anteriormente jazia solitária. Perto não estavam nem sua primeira companheira, muito menos a outra que surgira (sabe-se lá de onde). Não passou de miragem e como tal era magnífica, mas volátil. Tão impalpável como improvável.
Rescaldo de quem se deixara-se enganar pelos olhos do corpo e, advindo da tolice encantatória, findou os dias cega na alma!

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

É noite lá fora!


O único intruso do mundo era o feixe prateado que, entre as brechas das distraídas cortinas, entrava tal como flecha de luz. Era pontual. Tocava uma nesga do solo e brilhava como um espelho de pequeníssima poça d'água. No mais, não havia nem ponteiros e nem metragens. Desapareceram as linhas encarceradoras do tempo e do espaço. Estávamos dispensados deles.
O ar, cravejado de diminutos sons arfantes, oferecia-se para nutrir as possíveis necessidades de ser alimento para o transcurso dos instantes (se dele precisássemos). A superfície que nos sustinha, disposta em uma maciez desalinhada de formas, não requereria reparos, pois se orgulhava de ser a testemunha das ondulações que singravam os mares bravios que buscávamos mutuamente. Houvesse olhos a observar notariam, vez por outra, duas sombras a se entrelaçarem. Entretanto, na grande maioria do ambiente, só se percebia uma única forma a se mover e a produzir a preciosa pedraria que brotava das superfícies (resultado dos movimentos e do ritmo instaurado). Apesar de salobra, era feliz.
Fadiga - vocábulo inexistente enquanto houvesse a crença de que ali reinava o desejo das descobertas – não fez morada. Palmo a palmo, os milímetros percorridos, os sulcos abertos, as clareiras atravessadas, tudo era motriz para a permanência inalterada das proibições de uma invasão temporal. Estancou-se o filete da areia dentro da ampulheta.
Por fim, nos primeiros indícios de alvores do novo dia, ali jazíamos, no nosso hiato das limitações, a nos regozijar pela recompensa do merecido descanso de uma eterna noite amando-nos.